sábado, 18 de abril de 2009


Mude (Edson Marques)

Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho, ande por outras ruas,calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livrementena praia, ou no parque, e ouvir o canto dospassarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv, compre outros jornais...
Leia outros livros, viva outros romances.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
Escolha comidas diferentes,
Novos temperos, novas cores,
Novas delícias.
Tente o novo todo dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor,o novo jeito, o novo prazer, o novo amor,a nova vida.
Tente.
Busque novos amigos tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes,tome outro tipo de bebida compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado...
Outra marca de sabonete, outro creme dental...
Tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas,troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios, despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabelereiros,outros teatros, visite novos museus.
mude.
Lembre-se de que a vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um
Outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno,mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre,invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia.
Só o que está morto não muda!
Repito por pura alegria de viver:
A salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!!!

Sobre o(a) autor(a):Edson Marques, poeta, formado em Filosofia pela USP. Vencedor do Prêmio Cervantes/Ibéria em 1993. Sócio-fundador da Ordem Nacional dos Escritores. Se diz "um socialista romântico". Lançou o livro: "Manual da Separação".
Poesia apresentada no programa 227

Os poemas e os textos lidos em "Provocações” são, às vezes, livre adaptação do original, por Antônio Abujamra ou Gregório Bacic. O formato em que se apresentam escritos aqui é apropriado para a leitura em TV e não o seu formato original.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Poema - Álvaro de Campos

Ah, um soneto...

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro e por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...

(Fernando Pessoa/ obra poética - poesias de Álvaro de Campos)

Unidade corpo e mente

"...O contorno de meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem. Isso ocorre porque suas partes se relacionam umas às outras de uma maneira original: elas não estão desdobradas umas ao lado das outras, mas envolvidas umas nas outras..." (Merleau-Ponty, Maurice – Fenomenologia da percepção).

Tomando como fio condutor estas palavras, vamos tentar aqui uma breve reflexão a respeito do que venha a ser a idéia de um corpo próprio, de como é possível um trabalho que devolva ao indivíduo os seus limites e, assim, de como se constitui a sua identidade. Vamos, de início, reler com mais atenção as palavras de Merleau-Ponty.
Primeiramente, o corpo é a fronteira do sujeito com todas as outras coisas existentes no seu mundo. Embora pareça muito claro, a confusão deste limite é o lugar das patologias psíquicas, nem sempre agudas a ponto de podermos reconhecê-las prontamente. Mas, o que importa aqui é o fato de que o corpo tem um limite próprio, e que a maneira como ele está constituido não nos permite uma fragmentação ou uma justaposição de suas partes.
Quando recorremos a Merleau-Ponty, entendemos que o corpo funciona como um sistema único, pois suas partes estão envolvidas umas nas outras. Quando, por exemplo, tocamos uma mão na outra, entrelaçando os dedos, não podemos responder qual é a mão que está sentindo a outra, ou se a direita sente primeiro que a esquerda ou ao contrário. Elas, neste caso, representam como o corpo percebe e como pensa as suas percepções. Os olhos vêm já vendo com o pensamento. E se é verdade que a visão pode ser agradável ou não, que pode despertar alguma memória ou não, então também é verdade que há uma simultaneidade entre a percepção do objeto e o pensamento sobre ele. É como se a mão direita fosse a percepção e a esquerda o pensamento.
Este exemplo vale também para as relações que o indivíduo estabelece com o mundo. Vamos apenas desdobrar um pouco mais esta idéia. O gosto está na maçã ou na língua? Pois bem, para todas as experiências que o indivíduo vive é esta mesma estrutura que está presente. Não há gosto da maça sem a maçã, sem a língua, sem os receptores cerebrais para esta informação e, finalmente, sem a consciência, que se sabe sabendo o sabor. Só com todos esses elementos é possível propriamente saborear. Sendo assim, a idéia do gosto da maçã é tão importante quanto a lingua e quanto a própria maçã.
Quando entendemos esta estrutura, fica mais fácil vermos que não há uma hierarquia de importância; a importância de cada um está entrelaçada na importância do outro, assim como as mãos que se unem e entrelaçam seus dedos.
Vale citar um poema de Drumond para termos um apoio poético a esta teoria:

Verdade

A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Carlos Drummont de Andrade, Corpo, segunda edição, Ed. Record, 1984)